Entendendo a interdisciplinaridade como uma relação de reciprocidade, de mutualidade entre
disciplinas diferentes e que pressupõe uma atitude diferente frente ao problema
de conhecimento, ou seja, poderíamos dizer que o espiritismo é uma doutrina
interdisciplinar, isto é, toca diversos outros ramos do conhecimento humano, de
várias ciências, e mais, terá nela importante papel na desconstrução do
habitual modo de pensar da sociedade, pois influirá sobremaneira, de forma
geral, nestas mesmas áreas, quando o espiritismo for bem compreendido. Aliás,
alguns dos pontos já prenunciados pelo espiritismo, já estão sendo praticados
pela sociedade (ainda de forma imperfeita), mesmo sem a sociedade muitas vezes conhecer o que o espiritismo diz, é a força do progresso, também já dita pelo espiritismo.
O Livro dos Espíritos
demonstra isso, no meu entender, ao tratar de diversos temas que adentram
profundamente diversas áreas, por exemplo:
- Espiritismo e
Direito;
• Questões 358; 359;
616; 683; 685; 760; 761, entre outras.
- Espiritismo e
Psicologia/Psiquiatria;
• Questões 372-a;
374; 375; 376, entre outras.
- Espiritismo e
Sociologia;
• Questões 693; 693-a;
695; 696; 697; 775; 888; 888-a, entre outras.
- Espiritismo e Ciências
Naturais;
• Questões 19; 20;
30; 31; 34; 35; 36; 585; 587; 594; 596, entre outras.
- E outras
“O
Espiritismo, marchando com o progresso, não será jamais ultrapassado, porque,
se novas descobertas lhe demonstrassem estar errado sobre um ponto, ele se
modificaria sobre esse ponto; se uma nova verdade for revelada, ele a aceitará”
(Kardec, 1868). Temos aqui, nesse trecho da codificação, a exposição por Allan
Kardec de um dos principais aspectos do Espiritismo, que o diferencia das
outras disciplinas que estudam o sentimento religioso, a noção de
espiritualidade e Deus: a sua estrutura científica de base.
Esse
aspecto ao mesmo tempo em que é uma virtude do Espiritismo, lhe atrai uma
responsabilidade e um desafio:
(1º) Como conciliar a necessidade de
manter a integridade doutrinária do conhecimento Espírita, e ao mesmo tempo
promover o seu progresso com a produção de novos conhecimentos, pesquisas e
conceitos?
(2º) Como permitir a comunicação
interdisciplinar do saber Espírita com as outras áreas de conhecimento
científico, sem abdicar de sua “pureza doutrinária”?
(3º) Por fim, como possibilitar a
comunicação dialética entre o Espiritismo e as religiões, uma vez que o campo
estrutural de conhecimento Espírita foi criado de forma a abrir espaço a essa
possibilidade?
Uma advertência
implícita a esses questionamentos é o cuidado que devemos ter em não
transformarmos o conceito e o objetivo de manter a “pureza doutrinária”, em um
discurso ideológico e dogmatizante que paralise o progresso da ciência espírita
e acarrete o seu fechamento para o diálogo com outras áreas de sabedoria. É
bastante comum que uma área de conhecimento científico se modifique ao longo do
tempo sem, entretanto perder a identidade que o particulariza. Essa é uma
característica estrutural do conhecimento científico, marcando a sua qualidade
de evolução e progresso.
Para exemplificar,
tomarei como ilustração outra ciência humana progressiva – a Psicanálise.
Fundada por Sigmund Freud, a Psicanálise surgiu através do estudo dos aspectos
desconhecidos do psiquismo humano. A Psicanálise estuda aquilo que existe de
desconhecido em cada um de nós – o inconsciente – através da análise clínica de
sonhos, verbalizações e outras produções psíquicas em ambiente
psicoterapêutico. Freud fundou a Psicanálise no início do século XX. Seu livro
sobre a “Interpretação dos Sonhos” foi publicado em 1900.
Mas, desde essa época
até os dias atuais, a Psicanálise progrediu de forma a ultrapassar sobremaneira
a contribuição genial de seu fundador. Acumulou novas descobertas, que
confirmaram alguns dos postulados de Freud, e negaram ou refutaram outros.
Revisões e transformações conceituais foram realizadas, e decisivamente, as
contribuições freudianas foram cada vez mais valorizadas à medida que os
psicanalistas desenvolveram a capacidade de raciocinarem por si mesmos,
partindo de Freud, mas mantendo um pensamento independente dele, ou seja, não
reduzindo as suas conclusões apenas àquilo que Freud pregava. Além disso, a
psicanálise dialogou com muitas outras áreas de conhecimento – teologia,
filosofia, filologia, biologia, sociologia, antropologia, etc – o que é algo
comum à interdisciplinaridade científica. Quando isso acontece, alguns
conceitos e idéias são inevitavelmente reformulados, sem que a área de
conhecimento em questão precise deixar a sua consistência estrutural fundante.
Assim, a ciência psicanalítica evoluiu sem deixar de ser Psicanálise. Parte
originalmente da herança teórica deixada por Freud, mas não se limita a essa –
ao contrário, transcende-a. Sendo o Espiritismo uma ciência, desafio semelhante
se fixa à sua frente.
Os questionamentos levantados
se justificam à medida que a Codificação foi escrita na segunda metade do
século XIX, num linguajar apropriado para a época, mas que precisa ser revisado
em função das novas descobertas e conceitos que se desenvolveram até os dias
atuais. Porém tal revisão precisa estar fundamentada em bases críticas que
mantenham a integridade da doutrina, possibilitando transformações e revisões
conceituais progressivas ao corpo teórico do Espiritismo e não distorções
pseudocientíficas alienadoras.
Assim, em que
parâmetros podemos nos basear para promover o progresso da ciência Espírita, de
forma a manter a sua Pureza Doutrinária? A resposta se encontra na análise
histórica do próprio percurso evolutivo dessa ciência. Quando Kardec –
orientado pelos Espíritos que são, aliás, os reais fundadores do Espiritismo –
organizou a literatura existencialista da Codificação, balizado pela sua
formação de pedagogo humanista e especialista em várias áreas de saber, em
grande medida ele se encontrava em sintonia com o racionalismo iluminista e a
filosofia positivista de meados do século XIX, que se expressa na ciência
Espírita pela predileção de basear as suas conclusões experimentais em dados de
observação empírica.
Mas, num certo
sentido relativo, Kardec já se encontrava muito à frente de seu tempo. Para
integrar ciência, filosofia e religião, Kardec precisou transcender o caráter
positivista do seu conhecimento, adotando um discurso pedagógico dialético e
sintetizador. À semelhança de filósofos como Hegel, apenas através de uma
lógica dialética (num discurso que une tese e antítese, em uma síntese) Kardec
poderia ter integrado noções aparentemente tão díspares como fé e razão, ou a
compreensão dos mecanismos de interação entre espírito e matéria.
Abstrai-se da leitura
kardecista o mesmo criticismo racional de Kant, e a construção do discurso
analítico nos moldes de uma hermenêutica clínica, semelhante à que Freud
fundaria como epistemologia científica na Psicanálise do século seguinte,
baseada no método da consistência interna do raciocínio lógico
empregado. Resultou daí, um discurso “totalizante” por parte de Kardec,
semelhante ao dos pesquisadores modernos de orientação holística. Entretanto,
essa metodologia científica não se encontrava formalizada na época de Kardec,
ou seja, o Codificador já possuía um olhar científico clínico e holístico
(portanto, sintetizador, amplo e global) numa época em que a ciência não se
pautava por tal paradigma. Certamente, foi necessário a união de sua formação
acadêmica rigorosa com a contribuição revolucionária dos Espíritos, para tal.
Essa estrutura global
de produção de conhecimento permitiu simultaneamente que ao longo do tempo, a
ciência Espírita muitas vezes se colocasse à frente da chamada “ciência
oficial”, ao mesmo tempo que muitas descobertas da ciência e da filosofia
caminhassem em direção à confirmação dos postulados Espíritas.
A contribuição mútua
entre o Espiritismo e a Medicina, também foi responsável pela fundação da
reconhecida Associação Brasileira de Médicos Espíritas, e suas regionais em
cada estado do país. Instituições universitárias respeitáveis como a USP e a
UNICAMP acabaram formando pesquisadores que são nomes importantes dentro do
movimento Espírita, tais como Núbor Orlando Facure (neurologista e ex-professor
da UNICAMP) e o mestre em Medicina Sérgio Felipe de Oliveira, que abriu espaço
para o Espiritismo em ambiente universitário com o seu curso de Pós-graduação
sobre Integração Cérebro-Mente-Corpo-Espírito, na própria USP. No campo da
filosofia o mérito é de José Herculano Pires, como tradutor das obras de Kardec
e pesquisador de parapsicologia. Outros nomes merecem ser citados como Hernani
Guimarães Andrade (na Parapsicologia e Psicobiofísica, com seus estudos sobre o
Modelo Organizador Biológico) e o psiquiatra Carlos Toledo Rizzini, que
escreveu sobre Psicologia e Espiritismo.
Outro fator de
destaque: pouco a pouco, começam a surgir teses de mestrado sobre o saber
Espírita, em ambiente acadêmico universitário, legitimando a posição científica
da Doutrina. Algumas dessas teses já alcançaram as bem-conceituadas
Universidades Federais Públicas, e outras foram defendidas nas PUCs de
diferentes regiões. Uma dessas teses deu origem a um livro recentemente lançado
- “O Espírito em Terapia” da psicóloga clínica Ercília Zilli, de
quem os esforços são responsáveis pela fundação, coordenação e manutenção da
Associação Brasileira de Psicólogos Espíritas (ABRAPE), outra vitória
importante para a divulgação da ciência Espírita.
Todas esses
pesquisadores estão contribuindo, pouco a pouco, para a construção da história
da ciência Espírita no Brasil. Sem se limitarem literalmente aos escritos da
Codificação, mas partindo dela, vêm promovendo um processo de evolução do
conhecimento Espírita, aliando a liberdade de pensamento crítico com os ideais
de “Pureza Doutrinária” tão apregoados pela comunidade Espírita. Trabalhos
interdisciplinares entre o Espiritismo e as outras ciências foram surgindo, sem
descaracterizar as especificidades de cada campo, sendo as revisões conceituais
realizadas em um contexto livre do pensamento dogmatizante, mesmo porque a
ciência não se forma sob um saber absolutista, mas sobre “verdades” relativas e
provisórias.
Como ciência, o Espiritismo também desenvolveu uma tecnologia própria, inicialmente com os experimentos mediúnicos realizados por Kardec (tais como os que são encontrados no “Livro dos Médiuns”) e depois com as contribuições da Parapsicologia (Andrade, 1990). Essa evolução também teve conseqüências no aprimoramento dos vários tipos de serviços de orientação espiritual, constituindo uma aplicação prática acessível à população.
Por fim, um próximo
passo do desafio evolutivo do conhecimento Espírita, será a articulação da sua
cosmovisão esclarecedora com o conhecimento produzido por outras religiões e
disciplinas espiritualistas. Filosoficamente, a estrutura dinâmica e dialética
do Espiritismo também foi criada para possibilitar a comunicação e a
transdisciplinaridade entre essas várias escolas de pensamento (vide a questão
628 de “O Livro dos Espíritos”), cabendo aos tempos futuros a concretização
dessa possibilidade.
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