domingo, 10 de junho de 2012

Porque o Espiritismo Não É Religião

Reedição do artigo baseado em trechos do livro "O Laço e o Culto" de Krishnamurti Carvalho Dias.

Matéria de 1 ano de blog e está unificada 


Lembrete: Neste texto seguem as palavras do Codificador da doutrina espirita Allan Kardec, dizendo que espiritismo NAO É religião no sentido comum do termo,  o qual todos conhecem, mas É no sentido FILOSÓFICO da palavra, mas recomenda que não chamemos o espiritismo de religião, pois o povo nao entenderia  que estariamos falando no sentido FILOSÓFICO e nem o que este sentido quereria dizer e entenderia o Espiritismo como mais um culto. E é o que vemos, inclusive da parte de muitos espíritas que, mesmo inteligentes alguns, não seguem Kardec como se espera e dizem que o espiritismo É religião sem explicarem porque dizem isso e sem fazer a importante ressalva que Kardec fez. 

Leiam, com atenção as frases em vermelho, especialmente.


A questão de saber se o espiritismo é ou não uma religião, mais que todas as outras questões, não é matéria meramente opinativa, pois depende de apreciação de muitos fatos, mas conduz a posições opinativas, a radicalizações. Irei nesse tópico apenas elencar fatos históricos e etimológicos trazidos por Kardec sobre a questão "religião", na Revista Espírita.

Sentindo Kardec que as palavras se revestem de imensa importância, cuidou de garantir, assegurar, que o espiritismo, todo um novíssimo universo de idéias e fatos, pudesse ser traduzido, vazado, por um elenco de palavras perfeitamente explícito, com um mínimo risco de confusões e obscuridade possível.

A codificação é, no seu contexto, tão explicita, tão clara, que me pergunto como pode haver alguma dúvida sobre as transparentes colocações de Kardec.

Este nunca deixou de pautar-se por três constantes, de que não se desviava:

a)      jamais chamava o espiritismo de religião;

b) repreendia, refutava, animoso até, em polêmicas, os que insistiam em dar à 
doutrina tal rotulação; e

c) ele mesmo só chamava o espiritismo de ciência ou doutrina, adjetivando esses substantivos de modo variado, mas sempre como matéria cientifica, filosófica e moral.

Por vezes, no que era acompanhado pelos Espíritos, concedia-lhe o epíteto de “laço”. Laço social, laço moral, laço sublime, era como às vezes chamava o espiritismo. Que quer dizer?

Temos de voltar ao começo da civilização ocidental, aos costumes e à cultura de Roma, à fonte da latinidade, para surpreender a prístina, primitiva, original acepção da palavra religião: tinha para os romanos, no latim, a significação de “nó” ou “laço”.

Quando Kardec recusava-se obstinadamente – e era irredutível nisso – a chamar de religião ao espiritismo, era ao vocábulo que objetava, pelo rumo que tomou, no curso dos séculos.


Mas não desadorava o conceito natural, nativo, que esse vocábulo expressava em tão priscas eras: o de laço moral, laço social, principio da união civil e política. Nos Prolegômenos d’O livro dos Espíritos, em seus últimos parágrafos, há a referência ao caráter de “laço fraternal que envolverá o mundo inteiro”. É o velho conceito romano, e religio-religionis, antes que a palavra fosse desnaturada, descambando para o significado de culto que estaciona hoje.

Na Revista Espírita de 1858, paginas 208/210, vol. 1 (coleção EDICEL), há uma carta de um certo Marius M. De Bordéus, que pede licença a Kardec para chamá-lo de confrade e conceitua que “a doutrina deve ser um laço fraternal entre todos que a compreendem e a praticam”.

Kardec retribui a essa conceituação com um lance antológico que vale a pena transcrever:

“Com efeito o espiritismo é um laço fraternal, que deve conduzir à prática da verdadeira caridade cristã todos os que a compreendem na sua essência, porque tende a fazer desaparecer os sentimentos de ódio, inveja e ciúme, que dividem os homens”.

Faz notar uma importante diferença, numa ressalva necessária:

“Mas esta fraternidade não será a de uma seita; para ser segundo os divinos preceitos de Cristo, deve abarcar a humanidade inteira, pois todos os homens são filhos de Deus...”.

Aí esta estampada, cruamente, a utilização do conceito natural de religio- religionis (nó, laço, nexo, relação social), com clara exclusão do outro sentido, o sobrenatural, que a palavra tomou depois, que implica o significado de culto e seita.

Nenhum culto, por mais hegemônico que seja, logrou jamais envolver a humanidade inteira. Todos se quedaram, sem exceção, detidos por limitações e partições geográficas, culturais, políticas, raciais, nacionais, lingüísticas.

Também nos prolegômenos, há a declaração de que ali está uma filosofia racional, isenta dos prejuízos do espírito de sistema, vale dizer, do dogmatismo.


Sem dogmatismo, que é o espírito de sistema; sem o sectarismo, que é o espírito de seita, como pode alguém enxergar aquela doutrina, que é um laço natural, nunca sobrenatural, feito de fatos e princípios, como sendo um culto religioso?

Ao cabo de um ano, ei-lo às voltas com um afoito Abade, François Chesnel, que pelas paginas de L’Univers, chamara o espiritismo de “uma nova religião de Paris”.

Na Revista de 1859, paginas 141 a 150 e 211 a 213, está documentada a forte reação de Rivail a esse fato.

“Os fatos protestam contra essa qualificação”, principia (pg. 150).

“Em segundo lugar, é o espiritismo uma religião?”.

“Fácil é demonstrar o contrário” (pg. 148).

“Seu verdadeiro caráter é o de uma ciência, não o de uma religião” (idem).

“...tem conseqüências morais, como todas as ciências filosóficas” (idem).

“O espiritismo não é, pois, uma religião. Do contrario teria seu culto, seus templos, seus ministros” (idem).

O Abade havia-se louvado, para aquela qualificação (de religião), no fato de os espíritas orarem a Deus em suas reuniões.

Kardec protesta:

“Que prova isto?”.

“Que não somos ateus. Mas de modo algum implica que sejamos adeptos de uma religião” (p. 149).

Antes havia assinalado o fato incrível de que, entre os adeptos do espiritismo, havia profitentes de todas as religiões e seitas: católicos, protestantes, israelitas, muçulmanos, budistas e bramanistas.

Quer dizer, eram religiosos por suas crenças em diversas religiões, no sentido de culto que esta palavra tem. Mas isso não se aplicava à sua adesão ao espiritismo, que não é uma religião no mesmo sentido, apenas um laço social, religando todos os que compreendem e praticam a doutrina, formando uma comunidade multirracial, multinacional, multilingüe, multiconfessional, uma perfeita antecipação do que seria um Esperanto, por exemplo, isto é, um fato muito abrangente que supera todas as partições e divisões humanas.


Por tudo isso, sabe-se qual era a permanente posição do Codificador, primeiro quanto ao espiritismo, segundo, quanto aos que vivam a chamar a este do que não é.

Essa polemica foi rumorosa. Teve replica do Abade. Kardec respondeu-lhe, também está nas paginas 211/213 do mesmo volume.

Explicita ali que “...o Abade Chesnel se esforça sempre por provar que o espiritismo é, deve ser e não pode deixar de ser senão uma religião nova, porque não decorre de uma filosofia e porque nele nos ocupamos da constituição moral e física dos mundos”.

E argumenta: “Sob esse aspecto, todas as filosofias seriam religiões” (pg. 211/212).

E repreende-os: “Realmente, senhor Abade, é abusar do direito de interpretar as palavras...” (...) “...Se, entretanto, o quiserdes elevar a todo custo ao plano de uma religião, vós o atirais num caminho novo” (213).

Para Kardec, o espiritismo era uma ciência filosófica que, longe de abafar as idéias religiosas, como fazem quase todas as suas congêneres, despertava aquelas idéias nas pessoas.

Mas isso, evidentemente, sem nunca se confundir com as religiões, isto é, os cultos, de cuja natureza não participa.

Porém, em 1861, no vol. 4 pg. 13, Kardec responde a Georges Gandy, diretor do Lê Bibliographie Catolique, um detrator da doutrina:

“Quereis a toda força, que o espiritismo seja uma seita, quando se aspira ao titulo de ciência moral e filosófica, que respeita todas as crenças sinceras”.

Estava lançada, de modo claro, a trilogia kardequiana: ciência, filosofia e moral.

Se a Igreja fraudou o significado-chave da civilização ocidental, inventando uma tradução inveraz, Kardec representou a restauração da verdade.

Aquela pagina 356 do vol. 11 da Revista Espírita, está carregada de eletricidade. Ali se repristina, volta-se, está-se remontando ao começo da civilização ocidental, num reencontro da cultura mundial com suas fontes.

No seu estado natural, nativo, com que nasceu, a palavra religião era só isso

– laço que reúne homens, que os aproxima, laço de substancia moral, feito de costumes espontaneamente assumidos e livremente mantidos e aceitos. Numa palavra – contrato social.

Religião ao natural é isso, tal é a religião natural a que o Espírito da Verdade aludiu um dia. Pois que isso o espiritismo é, um laço entre homens, laço feito de conhecimentos, noções, de habitualizações, convivências, hauridas nos fatos, nenhum mal haveria em ser pensado como aquele fato que antigamente se chamava de religião.

Chamado de religião, o espiritismo só parecia ser um culto aos olhos do povo e isso ele não é, não pode ser assim referido.

Por isso Kardec produz aquela explicação, na pagina 357 daquela obra, admitindo o óbvio, de que a doutrina espírita funciona como um laço entre os adeptos, identificando-os, solidarizando-os, não por pressões ou injunções, mas com base em leis naturais: a estima, a benevolência mutua, a fraternidade, a comunidade de conhecimentos e disposições .

É o sentido filosófico da palavra religião que está em jogo. Mas nem assim pode ainda a doutrina ser taxada de religião. Outros motivos poderosos impedem-no. Por isso Kardec descarta, de vez, qualquer aplicação da palavra para que o entendimento do povo não seja confundido.

E é isso que os seus seguidores devem fazer: atender a Kardec, não chamar o espiritismo de religião nem mesmo no sentido relativo, filosófico.

Pode-se perguntar por que Kardec não silenciou, quando teria sido fácil faze-o, ja que omitira aquela declaração durante todo o tempo que durara a Codificação.

Por que rompeu seu silencio a cinco meses de sua desencarnação? Foi seguramente o seu permanente compromisso com a verdade que ditou aquela manifestação.


Ao cunhar o nome de “espiritismo”, havia já decretado a necessidade futura de, a qualquer tempo, dar aquela explicação.

Os espíritas são adeptos do espiritismo, não os religiosos dele, pois não é um culto religioso. E correligionários é expressão que ficou confinada à área política, já que no âmbito profissional diz-se que há colegas, para estudantes e profissões liberais.

É uma questão de propriedade vocabular, que não pode ser ignorada: o adjetivo religioso/religiosa é privativo dos cultos látricos. Cada faixa de significação, entre os substantivos, traz a sua adjetivação adequada – o espiritismo consagrou a expressão de confrades, adeptos, tal como os radioamadores com “macanudos”, os esperantistas com “samideanos”, isto é, coidealistas.

Quando chamou de “ismo” a doutrina espírita, Kardec criou como que uma fatalidade semântica: passou a dever à cultura, à comunicação, aquela necessária explicação.

Portanto, ao subir à tribuna da Sociedade de Paris, a 1º de novembro de 1868, sexta-feira, às 20,30 horas, pesava sobre seus ombros a desincumbência de uma obrigação formidável, pessoal e histórica.

Nesse seu famoso discurso, de abertura da sessão anual comemorativa do Dia dos Mortos, na Sociedade de Paris, retoma o assunto e intitula a peça oratória com aquela mesma pergunta que fizera no bojo de sua resposta ad Abade:

É o espiritismo uma religião”? (Revista Espírita, pg.351 a360, ref. Dezembro de 1868).

Desta feita, opta por um procedimento diferente. Já dissera nove anos antes (1859) de forma peremptória, que o espiritismo não era religião, enquanto essa palavra significasse culto formal, igreja ou seita, crença mística e piedosa ou coisa assim.


No discurso de abertura, todavia, que é o nome mais sintético com que ficou conhecida essa manifestação, produz algo surpreendente, que precisa ser devidamente avaliado em sua imensa novidade, em sua grande significação: inova a lexicografia, contraria a etimologia geralmente aceita, aponta outro étimo, que não é corriqueiro “religare”, como geralmente se supõe.

Não revela qual é o étimo novo que introduz, mas pela tradução que dele dá, sabe-se que é o mesmo que Cícero refere, é religio-nis.

Todavia, passa alem do texto cicerônico e repristina, faz arqueologia semântica, atribuindo ao étimo um alcance maior, fixando sua tradução em “laço" ou nó, de modo explícito, tornando claro o que Cícero apenas insinua.

Retraça, empolgante, o que era na cultura romana o conceito de religião (pág.356):

“Com efeito, a palavra religião quer dizer laço”.

“Uma religião, em sua acepção nata e verdadeira, é um laço que religa os homens numa comunidade de sentimentos, de princípios e de crenças”.

“O laço estabelecido por uma religião, seja qual for o seu objetivo, é pois um laço essencialmente moral que liga os corações, que identifica os pensamentos, as aspirações”.

“O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre os que ele une, como conseqüência da comunidade de vistas e sentimentos, a fraternidade, a solidariedade, a indulgência e a benevolência mutuas”.

Se compararmos essa manifestação com o que dissera em 1858, a Marius M., veremos que são complementares.

Em seguida, tendo fixado bem o que era o significado primitivo, original e natural da palavra, desfecha (pág. 357):

“Se assim é, perguntarão, então o espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores. No sentido filosófico, o espiritismo é uma religião e nos o glorificamos por isto, porque é a doutrina que funde os elos da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas: as mesmas leis da natureza”.

Primeiro descreveu o que se deveria entender por religião, no sentido filosófico, que é o natural, na palavra. Era o seu nato e vero significado, esse que traçou: religião é um laço social e civil, religava homens entre si, formando comunidades por uma similitude natural.

Depois enquadra aí o espiritismo e estabelece que, nesse sentido natural da palavra, existe uma relação entre a doutrina e o vocábulo.

Isso não nega, mas confirma, o que dissera antes, no ano de em 1858 ao confrade de Bordéus, como expendera ao Abade em 1859. o espiritismo para Kardec, é um laço social, de substância moral, que consiste em uma ciência filosófica e moral, a qual não abafa as crenças religiosas, antes estimula-as, fazendo mesmo o prodígio de interessar e reunir, fazendo-os conviver lado a lado, pacificamente, os fiéis e crentes de todas as religiões.

Mas não é, ele mesmo, uma religião, pois não é um culto látrico, apenas uma doutrina filosófica espiritualista.

Claríssimo, não? Mas surgiram novas explicações:

“Por que então declaramos que o espiritismo não é uma religião”?

Eis aí uma boa pergunta. Todos estamos perplexos. Se ele é uma religião no sentido filosófico da palavra, não um culto, por que Kardec não dissera isso antes, limitando-se a declarar enfático que não era uma religião?

A resposta é magistral:

“Porque não há uma palavra para exprimir duas idéias diferentes e que na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto.

Prossegue Kardec:

“Se o espiritismo se dissesse uma religião (...) o público não o separaria das idéias de misticismo...”.

Quer dizer: chamado de religião, ainda que no sentido filosófico da palavra, que não é um sentido místico, o povo, que não faz tais distinções finas, sutis, de ordem semântica, acabaria pensando que ali estava uma religião no sentido único que maneja e conhece: um culto, uma igreja.


“Não tendo o espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual do vocábulo, não podia nem devia enfeitar-se com um titulo sobre cujo valor inevitavelmente se teria equivocado”.

Esse modo de dizer (“se teria equivocado”), significa que qualquer um, qualquer pessoa, se teria equivocado, que isso causaria um equivoco generalizado, com toda gente pensando o mesmo: que o espiritismo era um culto, uma seita religiosa.

E remata conclusivo: “Eis porque simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral”.

Então, por que muitos no Brasil, consideram o espiritismo uma religião? Um dos motivos foi Emmanuel, no livro O Consolador, em que lhe perguntaram se, vejam bem a condicional – “se” – tendo o espiritismo um tríplice aspecto, o cientifico, o filosófico e o religioso, qual destes seria o mais importante. 

Ora, era uma pergunta ardil, pois Emmanuel lançou seu famoso triângulo, definindo o espiritismo como “ciência, filosofia e religião”, dando a esta última a primazia, o que foi considerado verdade final pelos organismos federativos do movimento. Como premissa ficava estabelecido que os aspectos do espiritismo, os clássicos aspectos listados por Rivail, eram mesmo aqueles. Nos limites da pergunta, dava-se por liquido e certo que havia um aspecto religioso na trilogia definida por Kardec– o que é falso. 

Kardec jamais condescendeu nisso, pelo contrário, objetava irredutivelmente tal classificação. Para ele a trilogia era outra: o espiritismo era científico, filosófico e moral. Foi o que disse a seus opositores em polemicas. 

A idéia de um aspecto religioso é tipicamente não kardequiana e incorporou aqui no Brasil. Não é um dado da Codificação mas sim, aquela sim (a de um espiritismo religioso), uma formidável opinião pessoal.

Esperando que não me tomem por detrator da doutrina ou algo do tipo, pois estou apenas apresentando fatos históricos e etimológicos, trazidos por um professor e filólogo, que Rivail era, prossigo com mais fatos históricos, dessa vez apresentando o como e o porque do Espiritismo ter passado de “Doutrina Filosófica de Bases Cientificas e Conseqüências Morais”, assim definida por Kardec, a ser vista como “Ciência, Filosofia e Religião”, no Brasil.

No Brasil, o espiritismo entrou pela porta do misticismo, popularizando-se nas camadas sociais com substituto dos negros adivinhadores da senzala e dos magnetizadores, então em voga. A elite intelectual que a ele aderiu era constituída, em sua maioria, por religiosos que não renunciaram ao catolicismo, talvez porque – mesmo eles – não aceitavam-no como religião. Com o tempo, todavia, houve um sincretismo inevitável e o espírito de seita foi sendo formado, estilizando cultos e rituais das igrejas cristãs.

O que importa assinalar é que, como acentuou Carlos Imbassahy (o pai e não o filho), em sua obra “Religião”: “Allan Kardec é verdade, nunca chamou o Espiritismo propriamente de religião” (página 108, 2ª edição – 1951 – FEB). Ao contrário. Quem disse, foram os espíritas brasileiros e suas organizações. Alguns como o próprio Imbassahy, J. Herculano Pires e Deolindo Amorim, com admirável contribuição intelectual ou, entre os desencarnados, o espírito de Emmanuel, que através do médium Francisco Candido Xavier, lançou seu famoso triângulo, definindo o espiritismo como “ciência, filosofia e religião”, dando a esta última a primazia, o que foi considerado verdade final pelos organismos federativos do movimento.


Muitos se perguntarão se, diante do posicionamento de Emmanuel, Chico Xavier, Herculano, Deolindo e outros, haveria lugar para dúvida. A resposta é afirmativa. Porque é preciso repensar aquilo que foi estruturado no Brasil, com o nome de espiritismo e perguntar por que, ao cabo de mais de 150 anos, a doutrina continua sem identificação, confundida, adjetivada, mutilada, cada vez mais distante do genuíno pensamento kardequiano, como, curiosamente, os mesmos líderes e escritores mencionados, não cansam de denunciar.

È preciso encarar realística e sensatamente a verdadeira face o movimento espírita brasileiro e compará-la com a estrutura doutrinaria estabelecida por Allan Kardec e separar, refletir sobre o resultado prático alcançado. Reconhecer, enfim, que o espiritismo no Brasil foi erguido sobre bases de opiniões, ainda que respeitáveis, de espíritos e líderes que, todavia, refletiram não apenas suas idiossincrasia, mas também o ambiente cultural da sociedade brasileira desde o século passado, pelo menos.

Mas o espiritismo brasileiro também tem a sua historia particular. Quem leu já os excelentes livrinhos de Canuto de Abreu e Acquarone, biografando Bezerra de Menezes, há de ter-se espantado com a complicação que era o ambiente nacional, nos primórdios da doutrina. Dividiamo-nos em partidos que se desentendiam francamente. Havia os “místicos” e os “científicos”, os “espíritas” e os “Kardecistas”. (Lembra os religiosos e os ortodoxos de hoje, não?)

Muito mais tarde vamos encontrar o espiritismo dividido em “alto” e “baixo”, de “mesa” e de “terreiro”, com a introdução do complicador que foi o sincretismo. Havia quem dissesse das “linhas”, a branca, a oriental, a indiana e por aí a fora. Essa polarização e radicalização é que, antes da virada do século, levou a impasses fortes, que provocaram a formação da atual Federação Espírita Brasileira


A crônica nesses dias, em matéria documental, é produzida por partidários da facção que predominou. Os místicos, religiosos, evangélicos, como se denominavam, conseguiram impor-se, menos pelas razoes próprias que os amparassem de modo inconfundível, do que pelos erros e desorientação dos que foram alijados.

É preciso compreender como eram as coisas, então. O espiritismo era visto daqui, com fumaças e neblinas de desinformação. Era um pensamento francês, um requintado pensamento francês, donde vinham todos os demais que alimentavam a mentalidade brasileira, que habitava cabeças mais próprias para ostentar melenas e chapéus elegantes, do que, realmente, para pensar em profundidade.

Superficialismo, frivolidade e muita alienação cultural, adornavam a rarefeita vida intelectual do país. A base escravocrata, na aristocracia rural, rebaixava-nos como povo. Os livros de Kardec, embora conhecidos desde quase sua publicação inicial, somente foram traduzidos em 1875, dezoito anos depois e assim mesmo nem todos, nem na proporção e preço exigidos, para que se produzisse a informação plena.

Pode dizer-se que se entendia, então, o espiritismo, pela metade, filtrado pelas predisposições mentais de cada um, dominada que era nossa sociedade pelo imperialismo sectário da religião católica. Havia tanta desinformação que os adeptos viviam espantosamente incientes da natureza real daquilo que freqüentavam e diziam professar.

Os nomes de centros refletem essa perplexidade. São típicos produtos de mistura de catolicismo com outros elementos. Tipicamente religiosos.

O elemento intelectualizado, a elite que sustentava a comunicação, na tribuna, na imprensa, nos panfletos passados de mão em mão, também cindia-se.

Ou adotavam uma linha puramente literária ou confiavam-se a piedosas dissertações, copiando senão o fundo, pelo menos a forma dos discursos sacros.

Acquarone é mais objetivo que Canuto, mas ambos concordam que reinava um desafinamento total nessa orquestra de adeptos.


É perigoso julgar uma época como aquela, pelo risco de injustiçar. Hoje contamos com um formidável arsenal de instrumentos de analise e correção de rumo, que fazem a razão independer da tutela religiosa, mas naquele tempo pouco se podia fazer.

O roustainguismo foi mais assimilado pelas pessoas que vinham do catolicismo, tinham a mente obnubilada por preconceitos e bloqueios. O roustainguismo falava de coisas familiares. O culto da Virgem Maria, a proposta piedosa, as imagens da sua retórica toda sacralista.

Havia toda uma crosta de equívocos e mal entendidos no ar, impossíveis de serem desfeitos. Tendo faltado a esses veneráveis fundadores do movimento uma visão mais límpida, ficou-se com a impressão errônea de que Kardec era “científico” ao passo que Roustaing era mais “evangélico”.

Também deve-se reconhecer que os chamados “científicos”, costumavam descomedir-se, exceder-se, com insistências e elitismos, realismos incríveis, que terminaram justificando boa parte dos reparos que até hoje são-lhes desfechados. Os extremismos e radicalismos nunca conduzem a bons resultados, e o que deu foi se cavar, lentamente, o fosso de incompatibilidades e incompreensões, onde dificilmente se pode dar razão completa a cada um dos lados. (Novamente, não lembram os Espiritas religiosos e os Espiritas ortodoxos de hoje, ambos radicalizando em seus pontos de vista e achando que estão certos e o outro lado errado?)

Por volta dos anos 30, a situação política do Brasil era peculiar. Seguindo a onde universal dos regimes de direita, a ditadura de Vargas instalara-se apos a Revolução, que derrubara a Republica Velha, sob vibrações de justas esperanças.

Era um regime de exceção onde, à falta das claridades solares da lei, livremente fabricada em legislativos eleitos pelo voto livre do povo, com representação autenticamente democrática, pululavam os cogumelos e demais fungos típicos da sombra do arbítrio, as excrescências das ditaduras, afinal.

Vargas já tem os seus críticos e analistas, não irei engrossar esse número. Quero só dizer que Robert M. Levine, um brazilianist americano, portanto um daqueles que sabem das coisas, no seu livro, “O Regime de Vargas”, edição da “Nova Fronteira”, refere que a Igreja Católica, grande amiga e beneficiária de todos os totalitarismos, exigia e obtinha, do ditador, sempre que queria, o fechamento sumario de centros espíritas.

Que foi assim em 30, 32, 35, 37 e 38. quem o diz é um brazilianist, que afinal sabem mais do Brasil do que nos mesmos.

O fato é que o relacionamento entre o governo, a sociedade e o espiritismo foi pontilhado de lamentáveis incidentes e excessos perfeitamente dispensáveis, provocado pelo religiosismo sectário e intolerante, de um lado; de outro, pela eterna covardia moral e despreparo crônico das chamadas autoridades competentes, para administrar a coisa pública, principalmente a convivência entre as correntes de opinião.

Dirigentes e médiuns, freqüentadores de centros, eram presos arbitrariamente e fichados, numa vergonhosa rotina de cerceamento da liberdade de consciência e de reunião, mesmo sendo desarmada, para fins pacíficos, como rezava a Lei, mesmo a legalidade relativa das constituições suspensas e substituídas por decretos- leis.

A comunicação espírita arrisca-se a desmemória total do esforço e das abnegações desses confrades corajosos, íntegros, prudentes e humildes, que Deolindo Amorim evoca, salvando para a posteridade seus nomes.

Em meio a essa crise, um alvitre terá brotado, em certos círculos, como um achado: os cultos, as religiões, eram protegidos por lei, que lhes garantia o exercício.

Ora, o espiritismo era uma religião, (pensamento dominante nos círculos onde teria brotado o alvitre); logo, estaria protegido pelo manto da legalidade.


Por que não confugir ao patrocínio da lei? Por que não refugiar-se sob sua proteção? Bastaria enfatizar o pretendido aspecto religioso, para o que não se precisaria fazer nenhum esforço especial, tão difuso era esse pensamento, entre os confrades, sinceros, bem intencionados.

É difícil resistir quando uma sugestão dessas vem vestida com tanta aparência de racionalidade, de sorte que muitos não teriam desadorado o lembrete.

Afinal, tínhamos compromisso com os pobres, os deserdados, os necessitados, aspirávamos a uma situação de legalidade e tranqüilidade, não de clandestinidade, não de martirológios.

A idéia pousou com a naturalidade das soluções sem alternativa, como se fosse a única, a mais acertada, a mais confiável.

Mas não era. Era mais parecido com a velha historia de Esaú e Jacob, quando o primeiro cedeu ao mais jovem o direito de primogenitura, através da barganha de um “prato de lentilhas” com seu irmão. O “prato de lentilhas” barganhado passou como símbolo da irreflexão que se tem quando se aliena um bem valioso, importante, capital, por coisas sem valor, num momento de precipitação, explorado pelo oportunismo, pela velhacaria.

Essa barganha é uma imagem literária de citação obrigatória, aqui, pois foi assim que se consolidou, entre nós, a fantasia do religiosismo.

Pelo menos é o que se alega ter sido a razão da opção que se fez pelo religiosismo, como uma defesa contra pressões, por meio de uma mimetização com as religiões.

Para a corrente roustainguista, sincera e respeitável sempre, na coerência que mostrater com seu pensamento em separado, que é o de achar válida a teoria do díscolo de Kardec – aquela idéia caiu como sopa no mel.

Era a promoção de sua ideologia ao estagio de artigo de necessidade.

O espiritismo “tinha de” ser religioso, numa injunção, para por-se a salvo de perseguições, gozar dos mesmos direitos que as “demais” religiões, as “outras” religiões (é assim que costumam dizer nessa área).

Para a massa de adeptos, cujo raciocínio é místico, limitado a encarar o espiritismo como uma religião sucedânea da sua fé anterior, tudo estava bem. O enquadramento da doutrina nesse termos dispensava todo mundo da obrigação de mudar, de reciclar seu intimo par adaptar-se ao fato novo; este sim, o espiritismo, é que estaria sofrendo uma mudança para adaptar-se ao gostinho acomodatício dos adeptos.

Tudo não passava de uma colossal mimetização.

Enquanto a área religiosa da comunidade, encabeçada pela venerável Federação Espírita Brasileira, sentia-se à vontade com essa forma mimetista, que afinal casava-se com seu propósito natural, já que roustainguismo é uma visão confessionalista – a outra área não roustainguista, que era quase que só a Liga Espírita do Brasil, teve a lucidez de gerar outro tipo de reação, uma providência muito mais eficaz, que passava bem ao largo dessa mimetização.

Para esta área, aquela emenda sairia bem pior que o soneto, pois o espiritismo, uma vez nivelado, por oportunismo, com os cultos, assemelhado a eles, do ponto de vista de proteção legal,podia ser isso uma solução de ocasião,mas no fundo representaria um lamentável desprezamento da Codificação, que se opunha, como se sabe, a qualquer confusão naquele sentido.

Esaú, vendendo seus direitos por um prato de lentilhas, matou sua fome no momento mas alienou vantagens e interesses de grande importância e significação para sempre.

O espiritismo aceitando ser visto como religião para fugir a perseguições, poderia gozar uma relativa calmaria – por quanto tempo? – mas trairia seu permanente compromisso de lealdade a Kardec, que expressamente desautorizava tal transigência.


Era uma questão de princípios. A mimetização só interessava realmente a quem já tinha assentado no seu intimo que o espiritismo era mesmo um culto religioso, uma visão opiniática, sem dúvida, pois nao é essa a expressa realidade da Codificação.

Minha pergunta agora: Qual a dificuldade de entender o que Kardec disse?

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